A ideia de desenvolvimento está ultrapassada. A sentença de Eduardo Gudynas pode soar como heresia diante da adesão, inclusive entre as esquerdas, ao imperativo do crescimento econômico. Não tem problema. Diretor do Centro Latino-americano de Ecologia Social (Claes), com sede em Montevidéu (Uruguai), Gudynas busca mesmo uma mudança cultural.
“No processo atual, as expansões econômicas geram maiores problemas sociais e ambientais. Um exemplo é a vergonhosa realidade de Brasil e Argentina, grandes exportadores agrícolas, mas com pobreza rural e insegurança alimentar. A tarefa não é pensar em desenvolvimento alternativo, mas alternativas de desenvolvimento”, exemplificou Gudynas em entrevista a esta edição de Democracia Viva.
Eduardo Gudynas é referência intelectual de um movimento crescente na América Latina para viabilizar essas alternativas de desenvolvimento. Nesta entrevista, ele não economizou repertório. Criticou o neodesenvolvimentismo e o neoextrativismo das esquerdas do continente, os modelos capitalistas “benévolos” de Joseph Stiglitz e do nobel Amartya Sen e propôs uma ética “biocêntrica” para romper com a lógica utilitária.
A seguir os principais trechos da entrevista:
democraciaviva – O senhor critica os novos desenvolvimentismo e extrativismo na América Latina, inclusive de países governados pela esquerda. Por quê?
EDUARDO GUDYNAS – Com o objetivo de aumentar exportações, o novo extrativismo repete a apropriação intensa dos recursos naturais, que provoca fortes impactos sociais e ambientais. A diferença do extrativismo clássico de governos conservadores para este novo é que a presença do Estado hoje é muito maior. São cobrados impostos altos, como no caso do petróleo e do gás na Bolívia e no Equador ou das exportações de soja da Argentina. Em outros casos, há uma regulação estatal mais rígida, como com o petróleo brasileiro. O Estado absorve uma fatia maior da riqueza gerada por esse extrativismo e quase sempre investe boa parte do dinheiro na manutenção do próprio Estado e em especial de programas de assistência social para os mais pobres.
O novo extrativismo se distancia da esquerda clássica por se basear na exportação de matérias-primas e na alta dependência de empresas transnacionais, mas se aproxima dessa esquerda por destinar recursos financeiros gerados nessas atividades a programas sociais. Os exemplos mais claros são a expansão mineral e petrolífera de Bolívia, Equador e Venezuela, a mineração, o petróleo e a agroindústria para exportação de Argentina e Brasil. Até o Uruguai, que não possuía mineração em grande escala, começará a explorar o ferro. Em quase todos esses países, o papel das matérias-primas na base produtiva e exportadora aumentou sob os atuais governos progressistas.
DV – O que aconteceu com a preocupação ambiental das esquerdas que chegaram ao poder?
GUDYNAS – Por muitos anos, a esquerda convencional da América Latina não defendeu os temas ambientais, e até os combatia. Considerava um modismo de países ricos, coisa de capitalismo burguês. É preciso lembrar que na década de 1970 muitos dos ataques mais duros à ideia de limites ecológicos do crescimento econômico vieram de intelectuais da esquerda latino-americana.
A associação entre o ambientalismo e a esquerda é recente e se deve à convergência pela redemocratização, especialmente no Brasil, Argentina, Uruguai e Chile, e o apoio de militantes verdes a partidos de esquerda. Em sua luta pelo poder, os partidos de esquerda incorporaram temas ambientais, mas não houve necessariamente uma transformação na cultura política de suas lideranças. A relação dos verdes com a esquerda convencional foi como um amor não correspondido. Boa parte do ambientalismo tem uma sensibilidade de esquerda, mas poucos foram os da esquerda que se mostraram com espírito ecológico.
DV – É possível pensar em desenvolvimento sem crescimento econômico? Em crescimento sem apropriação abusiva de recursos naturais?
GUDYNAS – É possível. Hoje está acontecendo o inverso. As exportações aumentam, a economia cresce, mas a qualidade de vida e o meio ambiente não melhoram substancialmente. Desenvolvimento sustentável é aliar o desempenho econômico com a qualidade de vida das pessoas. Logo, o objetivo do desenvolvimento agropecuário não deve ser exportar alimentos como mercadorias, mas dar de comer à população e erradicar a fome.
No processo atual, as expansões econômicas geram maiores problemas sociais e ambientais. Um exemplo é a vergonhosa realidade de Brasil e Argentina, que são grandes exportadores agrícolas, mas com pobreza rural e insegurança alimentar. Isso mostra como a ideia de desenvolvimento está ultrapassada. A tarefa não é pensar em desenvolvimento alternativo, mas alternativas de desenvolvimento.
DV – O senhor pode comentar as suas criticas à visão sobre desenvolvimento da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) e às dos economistas Joseph Stiglitz e Amartya Sen?
GUDYNAS – A minha análise tem dois componentes. O capitalismo atual, de base financeira, entrou em colapso, não apenas na prática, como aconteceu com os Estados Unidos e em países industrializados, mas também na teoria. Assim, é incrível que não haja um debate intenso nos países sulamericanos governados pela esquerda, que não surja novos modelos e reformas.
O segundo componente da minha análise é colocar sob essa perspectiva as propostas de algumas instituições e autores. A Cepal, em informe recente, encoraja a exportação de matérias-primas. Onde exportar matérias primas é uma alternativa? Amartya Sen e Joseph Stiglitz vão além. Sen quer uma regulação social do mercado, uma cara mais humana do capitalismo. Stiglitz defende maior controle sobre os fluxos globais de capital. Nos dois casos, o princípio é o atual capitalismo como base de qualquer desenvolvimento, com alguns reparos para solucionar os problemas. O capitalismo seria o motor do desenvolvimento e esse motor não deve ser mudado. Basta consertar algumas peças.
DV – Qual seria então a alternativa?
GUDYNAS – Como entendo que o problema não é apenas político e partidário, mas que estamos imersos numa cultura, numa ideologia do progresso, as mudanças devem começar por aí. É importante denunciar que o meio ambiente, incluindo as pessoas, tem sido visto de forma utilitária, quase sempre por seu valor econômico. É indispensável uma ruptura com essa perspectiva.
O segundo passo é forçar a discussão e a análise desses temas. A ética é quase um campo abandonado. Supõe-se que é entretenimento de filósofos em universidades, quando deveria ser questão central para governantes, economistas, meios de comunicação e movimentos sociais.
Proponho, em contraposição ao antropocentrismo, no qual todas as medidas estão em função da utilidade para o homem, o biocentrismo, que reconhece o valor de tudo que nos rodeia. A clássica separação entre natureza e sociedade não se aplicaria, e nos reconheceríamos como imersos num ambiente. Assim, o que antes era apenas valorizado por sua utilidade econômica se reveste de outros valores. Os seres vivos e o meio ambiente têm valores próprios, independentes da percepção ou ação humana.
DV – Como encaminhar na prática essa perspectiva biocêntrica?
GUDYNAS – O trabalho do Centro Latinoamericano de Ecologia Social (Claes), especialmente nos países andinos, é elaborar uma teoria e propostas práticas para o que chamamos de transições. São rotas de saída possíveis do atual desenvolvimento extrativista para outros de tipo biocêntrico. Neste caso, o trabalho do nosso grupo é particular. A nossa transição aponta para mudanças substanciais, mas entende que elas serão alcançadas em passos sucessivos, com o apoio social. A transição combina velhas estratégias e novos instrumentos e é necessário aceitar essa diversidade. O central é garantir que cada passo dessa caminhada permita um novo passo. E assim a transição se aprofunda.
Por exemplo, entendemos os mecanismos de mercado como os bônus de carbono não promovem alternativas de desenvolvimento, pois reforçam a mercantilização da natureza e o papel do Sul como provedores de bens e serviços primários. Mas isso não quer dizer que somos contra todos os instrumentos de mercado. Nas transições que propomos, a correção ecológica dos preços pode contabilizar o dano ambiental causado por monoculturas exportadoras.
DV – Há uma articulação ou grupo organizado em torno dessas ideias?
GUDYNAS – Há um fortalecimento da aliança com os novos movimentos sociais, especialmente os que se interessam pelos temas de gênero, direitos das minorias, meio ambiente, e, junto com eles, organizações indígenas, camponesas e pequenos agricultores. Existem diferenças de mobilização entre os países. O debate sobre alternativas ao desenvolvimento está mais forte e variado nos países andinos do que no Brasil e na Argentina. No Equador, por exemplo, se discute como medida de proteção social e ambiental o abandono do petróleo. Uma proposta desse tipo no Brasil do pré-sal resultaria em muita tensão. É por isso que o Cone Sul perdeu a liderança nesse debate.
DV – Nas últimas eleições presidenciais no Brasil, a candidatura da ambientalista Marina Silva obteve votação expressiva. Qual o significado desse resultado?
GUDYNAS – O que se viu no Brasil foi uma campanha muito superficial, na qual as estratégias de desenvolvimento não foram tema substantivo. O governo de Luiz Inácio Lula da Silva deixou uma herança ambiental muito controversa, com grandes obras, expansão da mineração e dos cultivos de exportação, sem resolver problemas ambientais urbanos e com um saldo questionável de proteção à Amazônia.
Foi nesse cenário que Marina Silva mostrou o seu potencial. A sua saída do PT e a sua candidatura alternativa mostraram que há espaço para um programa ambientalista. O peso eleitoral alcançado pelo Partido Verde, graças à Marina, é importante e é um feito raro na América do Sul, onde os verdes não tiveram êxito. Marina ilustrou um perfil de candidato que será cada vez mais frequente no futuro. Hoje já há processos similares no Peru e no Equador. Uma mulher mestiça, que vem da floresta e que não se encaixa nos parâmetros clássicos de esquerda e direita.
Fonte: Revista Democracia Viva
Nenhum comentário:
Postar um comentário