por Florêncio Vaz
O Sairé proporciona mesmo cenas poéticas e transcendentais, como a foto das canoas em filas cortando o rio, e como os rostos dos idosos(as) devotos(as) diante da imagem do Divino Espírito Santo durante a ladainha na noite de 5ª feira.
Pena que nessas ocasiões pouca gente está ali para ver. A grande maioria chega mais tarde para as apresentações dos artistas de fora da região e dos botos. E afirma que foi ao “Sairé”. Na verdade, essas pessoas foram a um outro Sairé que acontece simultaneamente ao antigo e verdadeiro Sairé. Não que os botos sejam uma festa falsa ou ilegítima. Os botos estão aí, têm o seu lugar, e isso é indiscutível. Estou dizendo simplesmente que o Festival dos Botos não é o Sairé. Até a prefeita Maria do Carmo falou isso em um jornal local nesta sexta-feira. O assunto é meio chato, mas eu vou falar.
O Sairé de Alter do Chão, a continuidade histórico-cultural das antigas práticas locais, ainda existe, mas está seriamente ameaçado. Na 5ª feira à noite, na ladainha, só vi qase senhores(as) bem velhinhos. Seu Servito (que canta folias) e mais uns dois precisavam sentar de vez em quando para descansar. Dona Maria Justa (a famosa Saraipora que carrega o Sairé) falou que ficou doente faz poucos dias, e estava ali com muito esforço e porque Deus ouviu suas preces. O antigo juiz da festa, Sr. Sardinha, faleceu ano passado.
E os jovens? Havia alguns adolescentes ali. As moças que seguravam a fita da Saraipora estavam deslocados e com o olhar distante, como se a sua praia fosse outra. Perguntei pela outra “moça das fitas” que sempre aparecia ao lado de Dona Maria Justa nos anos anteriores, e disseram-me que ela se tornou evangélica, e por isso deixou o posto.
Alguns dos rapazes que estavam como mordomos ou foliões riam e coxixavam entre si, como se a ladainha que acontecia lhes tocasse muito pouco. Estavam talvez pensando no outro Sairé, o dos botos. E as outras pessoas de Alter do Chão? Estavam trabalhando (como cozinheiras, garçons, artesãos etc.) em função do Sairé-espetáculo, aquele que é voltado principalmente para os visitantes, e onde cabe aos nativos primeiramente trabalhar ou se “apresentar”. Relaxar mesmo, só na Varriação, na 2ª feira, quando os visitantes já deixaram Alter.
Assim que esse velhinhos morrerem, o Sairé de Alter do Chão… se não morrer também, continuará apenas como uma caricatura, uma encenação mal feita apenas para turistas verem (o que de fato, já acontece em parte). E os botos continuarão, como parte de uma festa que só no nome será “Sairé”.
Assim será, a menos que se tome uma atitude agora. Uma das saídas para garantir a sobrevivência do Sairé de Alter do Chão seria a separação entre botos e Sairé (isso já foi falado aqui no blog), já a partir de 2011. Boto em setembro, e Sairé poderia voltar para a data antiga. Que decidam os defensores do Sairé, não os burocatas, políticos ou os empresários.
Na prática, as duas festas nunca de juntaram e continuam separadas, e apenas por força da circunstância acontecem na mesma época e lugar. Cada uma faz parte de uma lógica distinta, e as pessoas que valorizam uma ou outra sabem disso. Os mais idosos que cantam a ladainha em latim e beijam as fitas amarradas na imagem do Divino Espírito Santo, enquanto escutam o baque das caixas (tambores), o fazem porque isso tem um profundo sentido na sua cosmovisão e no seu modo de vida, herdados na sua infância ainda nas décadas de 1940-50: devoção aos santos, reciprocidade e gratuidade (comer e beber juntos, por exemplo), festa como o encontro de pessoas que se re-conhecem próximas, festa como síntese do lúdico e do devocional (essa dicotomia “religioso X profano” vem da cabeça dos padres, que os tapuios e o povo nunca engoliram) etc. E esse padrão festas de santo não é uma coisa do passado e nem de pequenas vilas. Basta ver Sant’Ana, em Óbidos e Arapixuna, São Bendito, em Gurupá e Nazaré, em Belém.
A outra lógica, onde os botos estão, é a festa-espetáculo grandiosa, que reúne a massa, do gringo ao índio, para assistir apresentações folclóricas ou de bandas e artistas-celebridades e para consumir, e consumir bastante. Aí, é só a bagaceira mesmo. Este é um padrão que chegou e já ficou em todo o Norte (Bois, Cirandas, Tribos, Botos etc.), cada festival divulgando que é “o maior” da Amazônia. Isso é um fato. Nesse padrão, o papel que cabe aos nativos é produzir (artesanato, comida, danças…), servir e apresentar aos outros: trabalhar é preciso, divertir-se… só depois da festa.
O Sairé que os moradores de Alter mantiveram até hoje foi uma festa onde o objetivo maior era a diversão, beberagem e comilança, uma brincadeira. Mas tudo isso era para eles mesmos. Não era para “apresentar” a ninguém. E ainda hoje, os velhinhos-heróis-da-resistência e seus simpatizantes seguem fiéis a esse tipo de festa.
Os botos e seus donos já se serviram do Sairé para ganhar espaço. Agora, poderiam deixá-lo em paz. Os botos não precisam mais do Sairé, nem do nome sequer. Que continuem como Festival dos Botos, e ponto. O verdadeiro Sairé não precisa dos botos. Quem disse que o Sairé vai morrer se for separado dos botos? Essa cultura já enfrentou conjunturas bem mais hostis, e se manteve de pé. Morte certa será continuar sufocada pelos botos.
Fonte: Blog do Jeso
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