Artigo de Iara Tatiana Bonin*
Assistindo ao horário eleitoral gratuito, ou as mensagens publicitárias dos diferentes candidatos que concorrem hoje ao cargo de presidente, observamos rapidamente que o cenário político é cada vez mais semelhante a um programa de variedades, com imagens elaboradas para o deleite do espectador e uma evidente espetacularização do cotidiano. Uma linha tênue separa o mundo do entretenimento do mundo das definições políticas na atualidade. Os marqueteiros que hoje coordenam as campanhas acreditam que os eleitores não desejam ver cenas de uma realidade perturbadora e não demonstram interesse por causas coletivas de longo alcance, pois estas demandam certo esforço e investimento.
Assim, um Brasil grandioso nos é apresentado cotidianamente, em que não parece haver pobreza, nem desemprego, nem injustiças, e onde aquela profunda desigualdade social que vemos no dia a dia parece ter, num passe de mágica, desaparecido. Exibe-se diante da tela um mundo risonho, um presente passado a limpo e um futuro deslumbrante. Para o Brasil seguir mudando, para mostrar-se ao mundo, para cumprir sua vocação de grande potência etc., estes e outros argumentos compõem os roteiros da propaganda eleitoral, nos quais o presidente tem dado o “ar de sua graça” cotidianamente, ora como admirador, ora como interlocutor, ora como conselheiro de sua candidata.
Não fossem as cenas tão constantes de pobreza que vemos, essas tantas vidas desperdiçadas, sem chance de estabelecer-se no mundo do trabalho, sem perspectivas que escapem ao assistencialismo, talvez acreditássemos que o Brasil se tornou um verdadeiro paraíso.
Deixando de lado o horário eleitoral gratuito e pensando nos rumos do governo, de modo especial nos meses finais deste mandato presidencial, vemos que as coisas também parecem ter assumido um tom de espetáculo: tudo é grandioso, é exemplar, é fabuloso, como nunca se viu antes, na história desse país.
Os rumos e os rumores…
Hoje, através da internet, é possível acompanhar as manifestações públicas do presidente sem sair de casa – tudo se torna visível nesse mega-cenário, e Lula parece se empenhar, mais do que nunca, para realizar obras espetaculares, de imenso impacto e de grande visibilidade. Um bom exemplo é o complexo de Belo Monte, esse grande monstro que durante 30 anos foi foco de grandes embates. A aprovação desta obra é narrada pelo presidente quase como uma “saga”, na qual ele se envolveu diretamente e, com o desfecho, parece se sentir vitorioso.
É triste ver como Lula reinventa sua trajetória de militância do passado para justificar suas escolhas do presente. Ele assim o fez, por exemplo, no ato em prol de Belo Monte, realizado em Altamira/PA em junho deste ano. Na ocasião, o presidente afirmou que, quando jovem, era desinformado, por isso protestava contra Itaipu, um dos grandes projetos edificados na ditadura. Falou também de certas “fantasias” nutridas em seus velhos (e esquecidos) tempos de militância, e generalizou esses “delírios”, aplicando-os a todos aqueles que, no presente, protestam contra a construção de Belo Monte ou de outras tantas obras que agridem violentamente o meio ambiente.
E na cerimônia de assinatura do contrato de concessão da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, em agosto deste ano, Lula afirmou de modo enfático: “Vocês não imaginam quantos discursos eu fiz contra Belo Monte, sem nem saber o que era. Me diziam “fala”, eu falava”. Com estes termos – que denotam ingenuidade e manipulação – Lula define a si mesmo, no passado e aos que hoje protestam contra Belo Monte. Muitos militantes deste mesmo partido, que hoje se alinham com a (neo)filosofia do Presidente, provavelmente também olham para trás e avaliam que suas práticas políticas eram apenas arroubos juvenis, ações impensadas de pessoas desinformadas, desavisadas e manipuláveis.
Conforme afirmou Lula, ele era um desses jovens que se ocupavam de “gritar contra” ao invés de utilizar sua energia produtiva para pensar em coisas importantes. O militante (aquele que acredita em algo, e por isso protesta, veste a camisa, sacode bandeiras) é apresentado aqui como um ser incompleto, ignorante, a quem falta sabedoria, discernimento, informação.
Discursando ainda, o Presidente da República se empolga em mostrar os supostos benefícios da obra e deixa ver uma espécie de aflição, uma ânsia em ver a grandiosidade de sua obra antes do fim do seu mandato. Reclamando da morosidade de certos procedimentos legais, sugere que se faça um inventário das “coisas hilariantes” que acontecem quando se propõe uma obra de infraestrutura.
E ele exemplifica: “às vezes aparece um osso, as pessoas pensam que encontraram um sítio arqueológico, e passam-se anos, ali, parada a obra, e depois foi uma coisa que não era de nenhuma importância. Há pessoas que acham uma pedra e acham que parece um machadinho indígena, e para a obra oito meses, ali, para tentar ver, depois descobre que não é nada. E ninguém arca com o prejuízo…” Assim, ele deixa transparecer, no tom de seus discursos, que o meio ambiente e a legislação que o protege são empecilhos ou penduricalhos, como ele mesmo gosta de dizer. Pode-se dizer, ainda, que uma lógica ambiental coerente e alicerçada em convicções políticas não combina com a ironia: “eu quero fazer um monumento à perereca – uma pererequinha que parou a obra durante seis meses” quando Lula fez referência à duplicação da BR 101.
Uma omissão que se traduz em números
Longe dos holofotes, e a despeito dessa inigualável onda de popularidade presidencial, ainda podemos verificam as opções políticas feitas pelo governo, observando, por exemplo, a execução do Orçamento Geral da União. Em números absolutos, o governo gastou, até o início de setembro, pouco mais de R$ 300 milhões, dos mais de R$ 780 milhões aprovados para ações e programas voltados para os povos indígenas em 2010. Isso corresponde a apenas 35% do total de recursos disponíveis. Em algumas ações, a execução orçamentária ainda é zero (é o caso da rubrica “recuperação da biodiversidade”); outras não chegam a 10% de execução (tal como a de “demarcação e regularização das terras indígenas”, em que se gastou 8,41% e “estruturação de unidades de saúde” para a qual foi utilizado apenas 3%). Enfim, esses números mostram que a questão indígena está muito longe de ser considerada relevante, uma vez que os recursos ali alocados não têm sido efetivamente empregados para assegurar os direitos destes povos. E o pior é que as garantias constitucionais parecem valer muito pouco quando esbarram em preferências e em interesses econômicos, muito mais valorizados nos tempos em que vivemos.
E na onda cor-de-rosa da publicidade, que diz que “a propaganda é a alma do negócio”, parece ter embarcado também a Fundação Nacional do Índio: a atual direção acaba de assinar um contrato com a A3 Brasil Eventos, para a realização de 12 seminários em diferentes regiões do Brasil, destinados a discutir o decreto de reestruturação da Funai. E lá se vão R$ 16,9 milhões (Fonte: DOU 163, de 25/08/2010) – verba pública superior àquela prevista para a rubrica “Fomento e valorização dos processos educativos dos povos indígenas”; ou para a “Promoção do etno-desenvolv imento das comunidades indígenas”, para citar apenas dois exemplos. Valor muito superior ao que foi, até agora, investido em demarcação e garantia das terras indígenas.
De concreto, nestes tempos, o que temos é a redução de conquistas já estabelecidas, com a suspensão de portarias de demarcação, tal como ocorreu com as terras Tarumã, Morro Alto, Pirai e Pindoty, dos Guarani Mbyá, todas localizadas no litoral norte catarinense. Não bastasse a pressão que empresários locais exercem sobre a Funai e o Ministério da Justiça, uma vez que essas terras são cobiçadas para a especulação imobiliária, há ainda esse discurso tantas vezes reiterado pelo Presidente de que os indígenas atrapalham, são excessivos, dão trabalho.
Caso o Presidente da República resolva escapar aos lampejos reluzentes dos holofotes e descer um pouquinho do palanque, poderá verificar in loco a situação insustentável em que vivem inúmeras comunidades indígenas deste país, aquelas que, sem a demarcação das terras, se mantém à beira das rodovias, em acampamentos provisórios e em condições degradantes, e muitas vezes essa situação se prolonga por décadas. Isso ocorre, em especial, nos estados de Mato Grosso do Sul e do Rio Grande do Sul.
Poderá também verificar que existem centenas de famílias indígenas vivendo em situação de miséria e abandono nas periferias de cidades; outras denunciando veementemente a falta de assistência em saúde e educação, a insegurança, a impossibilidade de dispor de suas terras, que continuam invadidas mesmo depois de homologadas, como se verifica hoje no Maranhão. Quem sabe, visitando alguns lugares menos deslumbrantes e escutando essas tristes histórias, o Presidente da República possa, enfim, seguir sua própria receita: ocupando-se de coisas mais importantes ele poderia utilizar as energias produtivas de seu governo para, pelo menos, executar o orçamento para a questão indígena, a questão quilombola, a questão ambiental. Isso sim, faria diferença!
*Iara Tatiana Bonin é Doutora em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Fonte: Eco Debate
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