Um relatório em poder do Ibama desde o último mês setembro revela declínio nos estoques da dourada (o famoso bagre atacado por Lula), do filhote e de outras espécies de grandes peixes no rio Madeira em parte do ano passado. Em 42 páginas, o documento não conclui que as obras das usinas de Santo Antônio e de Jirau sejam responsáveis pelo fenômeno, mas aponta uma associação de causas possíveis. Especialistas ouvidos por O Eco comentam que o levantamento deixa clara a importância da manutenção da saúde do rio para a sobrevivência de vários peixes e das populações que deles dependem, no Brasil ou países vizinhos. Enquanto isso, pescadores apontam problemas causados pelas explosões de dinamites para a construção das barragens.
A análise sobre a quantidade de peixes capturada entre abril e agosto de 2009 tem timbre do consórcio Santo Antônio Energia e foi baseada em dados de colônias de pescadores, principais portos de desembarque de pescado, comunidades ribeirinhas e outros pontos de amostragem no trecho do rio Madeira entre Porto Velho e Guajará Mirim, e parte do rio Mamoré. O relatório, assinado pela pesquisadora do Laboratório de Ictiologia da Universidade Federal de Rondônia (Unir) Carolina da Costa Doria, reconhece a falta de dados regionais sobre hábitos e necessidades de peixes migradores e aponta que o declínio nos estoques naquele período pode ter ocorrido mais por influência da poderosa cheia que atingiu o rio, mudanças no esforço de pesca e aumento da fiscalização.
“Observa-se variações na produção intra e interanuais as quais são grandemente influenciadas pelo pulso de inundação. Estas variações já eram esperadas e são reconhecidas como padrões em pescarias em Rondônia. As variações de produção entre os anos pode estar relacionada a fatores ambientais, a variações no esforço de pesca, aumento dna fiscalização e até mesmo ausência de registro do desembarque e/ou desse registro pelos pescadores”, diz o relatório. O texto também alega que as migrações de peixes não teriam sofrido impactos até o momento, mesmo com queda na quantidade capturada. Há manutenção, “até o momento, do padrão migratório conhecido para essas espécies, a despeito dos empreendimentos do Madeira. Apesar da produção registrada ser menor que a observada para anos anteriores”.
Dano certo
Para o pesquisador em biologia aquática Jansen Zuanon, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), apesar de inconclusivo sobre as causas no declínio da pesca naquele período, o relatório atesta a estreita ligação entre os peixes do Madeira e seus ciclos de cheias e vazantes. “O estudo mostra que esses peixes dependem da dinâmica hidrológica e de indicadores ambientais relacionados à qualidade da água para completar suas migrações ao longo do rio. Isso significa que não só a barragem, mas também as alterações na dinâmica hidrológica do rio provocadas pelas obras podem afetar negativamente as populações de grandes bagres e de diversas outras espécies de peixes que habitam aquela bacia”, disse.
Interativo - Imagens de Satélite da Usina de Santo Antônio |
Já o doutor em planejamento energético e professor da Unir, Artur Moret, a conclusão é de que as migrações de peixes poderão ser duramente afetadas pelo barramento do rio. “Como consequência, abaixo das usinas, os estoques pesqueiros irão declinar grandemente, porque nesses trechos a vazão do rio será regulada em menor menor fluxo que o atual”, disse. Mas para ele, a falta crônica de informações sobre a ecologia da Amazônia ainda impede um veredicto sobre os efeitos das usinas. “A não existência de dados históricos e regionais confiáveis indica que não existem informações suficientes para afirmar que os empreendimentos irão alterar positivamente ou negativamente o estoque pesqueiro”, comentou o coordenador do Fórum de Debates sobre Energia de Rondônia.
Por isso Zuanon alerta que o estudo é um importante indicador da necessidade de monitoramentos constantes e de longo prazo sobre o comportamento dos peixes no rio Madeira, durante e após a conclusão das hidrelétricas, até para se avaliar a eficiência de equipamentos como escadas para peixes e canais artificiais na manutenção de migrações. “Os impactos negativos aos grandes bagres e outras espécies são certos. Por isso, avaliações como essas têm que fazer parte dos empreendimentos, têm que entrar na sua conta”, salientou.
Pescadores preocupados
Das doze colônias de pescadores de Rondônia, duas contribuíram ativamente com dados para o relatório. Presidente da colônia Z1, de Porto Velho, com cerca de cinco mil associados, Marina Gomes Veloso comentou a O Eco que os estoques diminuíram acima da barragem de Santo Antonio. “Os peixes não estão subindo o rio assustados com as explosões. Isso afetou muito a pesca, não sobe mais nada, nem boto”, disse. Ela também teme que a formação do lago de água limpa prejudique a migração e reprodução da dourada e outras espécies. “Os peixes não subirão o rio de jeito nenhum. Eles precisam da água suja para migrar. Ficaremos sem o pescado nobre, que tem mais valor. O negócio será lutar para receber indenizações”, comentou.
As preocupações na colônia Z4, em Guajará Mirim, com aproximadamente 300 pescadores associados, não são diferentes. A presidente do grupo, Gerônima Melo da Costa, teme que as obras eliminem ou reduzam a muito pouco a oferta de espécies com maior valor econômico, mantendo no rio apenas os “peixes de verão”, como tucunaré, cará, piau e jaú. “Nossa preocupação é muito grande. O pescador é o principal ator do rio. Um depende do outro”, ressaltou.
O bagre desprezado por Lula é conhecido na região do Madeira como dourada (Brachyplatystoma rousseauxii). É um peixe de grande porte de cujos estoques ao longo do ano dependem muitas populações e mercados. A espécie tem grande valor comercial nos estados do Pará, Amapá, Amazonas e Rondônia e em regiões da Colômbia, Bolívia e Peru. Suas crias crescem no estuário amazônico, na região de Belém, e migram até três mil quilômetros rio acima para se reproduzir, desovando em regiões mais elevadas de países vizinhos.
O estudo de bacia feito para o rio Madeira aponta a possibilidade de outras duas barragens em seu leito. Uma delas na fronteira Brasil-Bolívia e outra já no território do país vizinho. No trabalho de internacionalização da Eletrobrás, o Brasil encaminha parcerias para obras com os governos da Venezuela, Peru, Argentina e Bolívia, que tem parceria com o Canadá para barrar um afluente do Madeira. Daí o alarme de ambientalistas, pesquisadores e pescadores com os impactos que um conjunto de usinas provocará também em outras espécies que dependem principalmente da “via expressa” naquele rio para procriar, como a piramutaba, piau, jaraqui e babão. Conforme levantamento da Unir, o Madeira abriga quase 460 peixes diferentes.
Geração de extinções
Estudos do Departamento de Ictiologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro mostraram que um em cada quatro tipos de peixes foram extintos no rio Paraíba do Sul com a construção de barragens, incluindo dourados e surubins e outras espécies migratórias.
À época do lançamento da pesquisa, em outubro de 2005, o então presidente da Comissão de Meio Ambiente da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, deputado Carlos Minc (PT), comentou que as barragens interromperam o rio, mudando a qualidade da água e fazendo com que os peixes perdessem o contato com áreas de reprodução. “Das 135 espécies de água doce na lista de ameaçadas do Ministério do Meio Ambiente, barragens ameaçam 51 delas. A Ossubtus xinguense e a Hypancistrus zebra só existem nas corredeiras de Altamira, e dançarão com a usina de Belo Monte”, lembrou Fábio Olmos, biólogo e colunista de O Eco.
Há trinta anos, as obras e enchimento do lago da hidrelétrica de Sobradinho, na Bahia, levaram degradação a florestas na região entre Remanso e Santo Sé, onde desde o início do século vinte foram registradas populações da ararinha-azul (Cyanopsitta spixi). Esses locais foram completamente destruídos, sem maiores avaliações sobre outros animais e plantas que haviam por lá. A ararinha está hoje extinta na natureza e seu retorno depende de um programa de reprodução no Qatar (Oriente Médio).
Em Minas Gerais, a ampliação da pequena central hidrelétrica de Brito a ameaça o surubim-do-doce (Steindachneridion doceanum), peixe de couro que pode alcançar um metro de comprimento e pesar mais de vinte quilos. Era encontrado antigamente em toda a bacia do rio Doce, hoje apenas em trechos daqueles rios. No pontal do Paranapanema, o antigo Pantanal Paulista foi afogado por hidrelétricas, acabando com áres naturais onde vivia o cervo-do-pantanal (Blastocerus dichotomus). Na região da Chapada dos Veadeiros, em Goiás, 22 projetos de pequenas centrais hidrelétricas podem dar cabo do pato-mergulhão. A manutenção de suas maiores populações está nas mãos do Brasil.
Na China, país com crescimento econômico e modelo de desenvolvimento capaz de arrancar suspiros em governistas daqui, a história se repete. Desde o represamento do rio Yangtze pela hidrelétrica de Gehzouba, em 1983, a vida do peixe-espátula (Psephurus gladius) ficou mais complicada. Um último adulto foi avistado em 2003 e, desde 1995, nenhum jovem foi registrado. A espécie é uma das maiores de água doce do mundo, podendo chegar a meia tonelada e medir sete metros de comprimento. A barragem dividiu o rio em dois, isolando áreas de alimentação e reprodução do gigante fadado ao desaparecimento.Por motivos semelhantes, o simpático golfinho do Yangtze, o baiji, também está ameaçado de extinção.
Um estudo do governo chinês mostrou que um terço das 150 espécies de peixes antes encontradas no rio Amarelo foram extintas. Os motivos apontados para tamanha degradação são pesca e poluição excessivas associadas à construção de hidrelétricas.
Fonte: O Eco
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