Não tem como existir uma certificação social da produção de etanol se o trabalho degradante, a destruição ambiental e a concentração de terra e de renda são inerentes ao seu histórico modelo de exploração.
Nesta quinta-feira, dia 25, o presidente Lula assinou um pacto, de “livre adesão”, com representações governamentais, de trabalhadores e empresários, produtores de etanol, após uma mesa de negociações que se desenvolveu no último ano. Sob o nome de “Compromisso Nacional para Aperfeiçoar as Condições de Trabalho na Cana-de-Açúcar”, o documento, elaborado pela Secretaria Geral da Presidência da República, tem como objetivo estimular e garantir as “melhores práticas” nas relações de trabalho e garantir o denominado “trabalho decente”. Com essa finalidade, adotou como principais pontos a contratação direta (fim da terceirização), o acesso do diretor sindical aos locais do trabalho, o transporte seguro e gratuito, assegurar o mecanismo de aferição de produção previamente acertada com o trabalhador, além do fornecimento de Equipamentos de Proteção Individual (EPI).
Desse modo, o acordo não acrescenta nada às conquistas já existentes na legislação trabalhista e nos dissídios coletivos, os quais são descumpridos, de forma crônica e contínua, pelas empresas que empregam os canavieiros brasileiros. Então, quem serão os beneficiados neste acordo? Tudo indica que mais uma vez serão os de sempre : os usineiros, os mais recentes “heróis nacionais”.
De fato, o que se percebe com muita clareza é que o principal objetivo deste acordo precário é preparar o terreno para a certificação social da atividade canavieira pelas empresas, sem mudar suas práticas, mas atestando a “qualidade” das condições de trabalho no setor sucroalcooleiro no país, o que não existe. A criação dessa certificação foi recentemente anunciada por Lula, em discurso durante a reunião da Organização Internacional do Trabalho (OIT), realizada em Genebra, no último dia 14. Para as organizações de direitos humanos e movimentos sociais, a motivação deste acordo visa unicamente sanar a rejeição internacional ao etanol brasileiro, provocada pelas centenas de denúncias que comprovam a relação intrínseca entre a produção de agrocombustível com o trabalho escravo e a devastação do meio ambiente.
O etanol brasileiro foi apresentado ao mundo, pelo Governo, como a salvação para a crise energética e para o combate à poluição proveniente dos combustíveis fosseis. Desde então, os usineiros passaram a ser proclamados oficialmente como “heróis nacionais”. Em setembro de 2007, o Presidente Lula chegou a visitar a Dinamarca, Finlândia, Noruega e Suécia, para tratar de investimentos entre os países. Naquela ocasião, o principal ponto de pauta foi o incentivo a pesquisas e comercialização do etanol brasileiro na Europa. Na Suécia – um dos maiores pesquisadores de agrocombustíveis do mundo e um dos maiores importadores do etanol brasileiro -, o Presidente foi questionado sobre o trabalho escravo nos canaviais brasileiros. Para restabelecer a imagem positiva dos agrocombustíveis, o Presidente apontou, como saída, a criação de uma espécie de “certificado social” envolvendo uma série de medidas que deveriam ser adotadas voluntariamente pelas Usinas para amenizar a situação de exploração dos canavieiros e canavieiras.
Se o etanol é combustível limpo, é somente do cano de escape do carro para fora, pois, até chegar lá, o chamado “biocombustível” incorpora um altíssimo custo social e ambiental. Portanto, não tem como ter certificação social se é inerente ao modelo de produção do etanol a superexploração do trabalho, a degradação ambiental, além da concentração da terra e da renda. De acordo com dados da Campanha Nacional de Combate ao Trabalho Escravo da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 2007, dos 5.974 trabalhadores resgatados da escravidão no campo brasileiro, 3.060, 51%, o foram das lavouras de cana de açúcar. Em 2008, dos 5.266 resgatados, 2.553, 48%, quase metade dos trabalhadores mantidos escravos no país o eram por grandes produtores de “combustível verde e limpo”. E em 2009 já são 951, 52% do total. Uma progressão considerável se comparada aos anos anteriores (1.605 libertados entre 2003 e 2006, ou seja 10% do total de libertados neste período).
O setor sucroalcooleiro e a dependência de recursos públicos – Nos últimos anos, o Governo Brasileiro intensificou seu apoio ao agronegócio, priorizando o Programa de Agrocombustíveis, a partir do etanol. Além de propor a regularização da grilagem de terras na Amazônia e de alienar partes extensas do território nacional às empresas transnacionais, o Governo disponibiliza grandes quantidades de recursos públicos ao agronegócio. A ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Roussef, anunciou recentemente, em um evento da União da Indústria de Cana-de-açúcar (Unica), em São Paulo, que o país manteve a liderança de produção do agrocombustível no mundo, e que a expansão ainda maior do etanol para o exterior é de fundamental interesse do governo. Só este ano, o setor recebeu mais de R$ 3,2 bilhões do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES. O valor supera em 36% o que foi investido no mesmo período do ano de 2008. Os recursos do BNDES destinados ao agrocombustível são extraídos, em grande medida, dos recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). No final de 2008, o incentivo aos agrocombustíveis sofreu uma forte redução. A crise financeira internacional, logo em seu início, impactou fortemente a atividade sucroalcooleira. Essa redução de investimentos denunciou, mais uma vez, a fragilidade e a conhecida dependência do setor dos recursos públicos e da ação do Estado.
A destruição causada pela produção de etanol no Nordeste – Na região, as usinas historicamente violam os direitos trabalhistas e negam a função social da terra, além de promoverem também a constante degradação do meio ambiente. Estudos comprovam que para cada litro de etanol produzido nas usinas, são gerados 12 litros de vinhoto – substância tóxica que destrói a biodiversidade. Como os dejetos são despejados nos rios, boa parte das águas que cortam as Usinas está contaminada. Outros fatores também agravam ainda mais a devastação do meio ambiente: o uso de agrotóxicos e as queimadas. Os governos Federal e Estadual continuam, na Zona da Mata nordestina, a não cobrar os débitos milionários de muitas usinas. Em vez de executar essas dívidas fiscais e tributárias – e, por essa via, obter terras para assentar trabalhadores e trabalhadoras -, os governos facilitam o perdão ou securitização das dívidas, favorecendo novos financiamentos para devedores crônicos e reincidentes.
Desafio das entidades e movimentos sociais para combater a produção de etanol e Trabalho Escravo – O enfrentamento ao trabalho escravo na produção do açúcar e do álcool segue sendo um dos principais desafios para os movimentos sociais e entidades de direitos humanos. Denúncias frequentes são encaminhadas aos órgãos competentes, mas poucas delas originam rigorosas fiscalizações por parte do Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho. Por sua vez, ao rastrear os canaviais e flagrar condições degradantes de trabalho, o Ministério Público do Trabalho acaba descartando a qualificação de trabalho escravo, em benefício de medidas mitigatórias que nada resolvem.
É hora de recolocar em pauta a aprovação do Projeto de Emenda Constitucional PEC 438/2001, sempre protelada pela bancada ruralista do Congresso Nacional, que prevê a expropriação, para fins de Reforma Agrária, das terras em que forem encontrados trabalhadores em situação análoga à de escravos. É hora de acabar de vez com essa vergonha em nosso país ao invés de tentar “maquiar” a realidade de centenas de trabalhadores e trabalhadoras rurais nos mais distantes rincões do campo brasileiro, esquecidos por um governo que os encobre com falsos selos politicamente corretos na busca desenfreada por uma imagem socialmente limpa no mercado agroexportador.
Goiânia, 25 de junho de 2009.
Comissão Pastoral da Terra (CPT)
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