quarta-feira, 7 de abril de 2010

Será que o Brasil precisa de Belo Monte?

Contexto: A concepção original da hidrelétrica de Belo Monte, que vem se remodelando desde o regime militar, ganhou destaque internacional e acabou engavetado devido à forte pressão dos povos indígenas e ambientalistas no final da década de 1980. Vinte anos depois, a Usina Hidrelétrica (UHE) Belo Monte volta repaginada como uma das principais obras do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo Lula.

O projeto ressurge como uma obra estratégica, apresentada por meio de um Estudo de Impacto Ambiental (EIA) de mais de 20 mil páginas, como a possível terceira maior hidrelétrica do mundo, perdendo apenas para a usina Três Gargantas (China) e para Itaipu (Brasil-Paraguai).
A hidrelétrica de Belo Monte propõe o barramento do rio Xingu com a construção de dois canais que desviarão o leito original do rio, com escavações da ordem de grandeza comparáveis ao canal do Panamá (200 milhões m3) e área de alagamento de 516 km2, o equivalente a um terço da cidade de São Paulo.

Questão energética: A UHE de Belo Monte vai operar muito aquém dos 11.223 MW aclamados pelos dados oficiais, devendo gerar em média apenas 4.428 MW, devido ao longo período de estiagem do rio Xingu, segundo Francisco Hernandes, engenheiro elétrico e um dos coordenadores do Painel dos Especialistas, que examina a viabilidade da usina.   Em adição, devido à ineficiência energética, Belo Monte não pode estar dissociada da ideia de futuros barramentos no Xingu. Belo Monte produzirá energia a quase 5.000 km distantes dos centros consumidores, com consideráveis perdas decorrentes na transmissão da energia.

Esse modelo ultrapassado de gestão e distribuição de energia a longas distâncias indica que o governo federal deveria planejar sua matriz energética de forma mais diversificada, melhor distribuindo os impactos e as oportunidades socioeconômicas (ex.: pequenas usinas hidrelétricas, energia de biomassa, eólica e solar) ao invés de sempre optar por grandes obras hidrelétricas que afetam profundamente determinados territórios ambientais e culturais, sendo que as populações locais, além de não incluídas nos projetos de desenvolvimento que se seguem, perdem as referências de sobrevivência. 

Questão ambiental: A região pleiteada pela obra apresenta incrível biodiversidade de fauna e flora. No caso dos animais, o EIA aponta para 174 espécies de peixes, 387 espécies de répteis, 440 espécies de aves e 259 espécies de mamíferos, algumas espécies endêmicas (aquelas que só ocorrem na região), e outras ameaçadas de extinção. O grupo de ictiólogos do Painel dos Especialistas tem alertado para o caráter irreversível dos impactos sobre a fauna aquática (peixes e quelônios) no trecho de vazão reduzida (TVR) do rio Xingu, que afeta mais de 100 km de rio, demonstrando a inviabilidade do empreendimento do ponto de vista ambiental. Segundo os pesquisadores, a bacia do Xingu apresenta significante riqueza de biodiversidade de peixes, com cerca de quatro vezes o total de espécies encontradas em toda a Europa. Essa biodiversidade é devida inclusive às barreiras geográficas das corredeiras e pedrais da Volta Grande do Xingu, no município de Altamira (PA), que isolam em duas regiões o ambiente aquático da bacia. O sistema de eclusa poderia romper esse isolamento, causando a perda irreversível de centenas de espécies.

Outro ponto conflituoso é que o EIA apresenta modelagens do processo de desmatamento passado, não projetando cenários futuros, com e sem barramento, inclusive desconsiderando os fluxos migratórios, que estão previstos nos componentes econômicos do projeto, como sendo da ordem de cerca de cem mil pessoas, entre empregos diretos e indiretos.  

Questão cultural e impactos da obra sobre as populações indígenas: O projeto tem desconsiderado o fato de o rio Xingu (PA) ser o ‘mais indígena’ dos rios brasileiros, com uma população de 13 mil índios e 24 grupos étnicos vivendo ao longo de sua bacia. O barramento do Xingu representa a condenação dos seus povos e das culturas milenares que lá sempre residiram.  

Por que os Kayapó, assim como os povos indígenas do Parque Indígena do Xingu, que estão na cabeceira do rio, têm se manifestado ferozmente contrários ao barramento do Xingu, que acontecerá a quase 1.000 km de distância de suas terras? Porque para os índios, o rio é o mundo, lá estão seus ancestrais, suas tradições, seus mitos, seus territórios sagrados, sua cultura. E mesmo a mil quilômetros de distância de onde vivem, o barramento do Xingu terá um impacto direto nas suas vidas.

Na cosmologia indígena, todos os seres estão ligados por uma única teia, que de forma alguma se dissocia da sua vida. O rio tem forte simbolismo para os povos indígenas do Xingu. Sob a sua ótica, ele é continuação da própria casa e da própria alma; é um ser vivo que constitui a essência da cultura e da sobrevivência indígena. 

O projeto, aprovado para licitação, embora afirme que as principais obras ficarão fora dos limites das Terras Indígenas, desconsidera e/ou subestima os reais impactos ambientais, sociais, econômicos e culturais do empreendimento. Além disso, é esperado que a obra intensifique o desmatamento e incite a ocupação desordenada do território, incentivada pela chegada de migrantes em toda a bacia e que, de alguma forma, trarão impactos sobre as populações indígenas.

Como já exposto, o Trecho de Vazão Reduzida afetará mais de 100 km de rio e isso acarretará em drástica redução da oferta de água.  Os impactos causados na Volta Grande do Xingu, que banha diversas comunidades ribeirinhas e duas Terras Indígenas - Juruna do Paquiçamba e Arara da Volta Grande, ambas no Pará -, serão diretamente afetadas pela obra, além de grupos Juruna, Arara, Xypaia, Kuruaya e Kayapó, que tradicionalmente habitam as margens desse trecho de rio. Duas Terras Indígenas, Parakanã e Arara, não foram sequer demarcadas pela Funai. A presença de índios isolados na região, povos ainda não contatados, foram timidamente mencionados no parecer técnico da Funai, como um apêndice.

A noção de afetação pelas usinas hidrelétricas considera apenas áreas inundadas como “diretamente afetadas” e, por conseguinte, passíveis de compensação.   Todas as principais obras ficarão no limite das Terras Indígenas que, embora sejam consideradas como “indiretamente afetadas”, ficarão igualmente sujeitas aos impactos físicos, sociais e culturais devido à proximidade do canteiro de obras, afluxo populacional, dentre outros. O EIA desconsidera ou subestima os riscos de insegurança alimentar (escassez de pescado), insegurança hídrica (diminuição da qualidade da água com prováveis problemas para o deslocamento de barcos e canoas), saúde pública (aumento na incidência de diversas epidemias, como malária, leishmaniose e outras) e a intensificação do desmatamento, com a chegada de novos migrantes, que afetarão toda a bacia.  


Violação de direitos humanos:
As populações tradicionais que habitam a área onde a usina foi planejada não foram suficientemente ouvidas nas audiências públicas realizadas para debater o projeto, como determina a legislação brasileira e a Convenção 169 da ONU, ratificada pelo Brasil em 20/6/2002, que garante aos índios o direito às oitivas, ou seja, o direito de serem informados de maneira objetiva sobre os impactos da obra e de terem sua opinião ouvida e respeitada. Foram realizadas apenas três audiências públicas, consideradas insuficientes pelo Ministério Público Federal. Infelizmente, no momento atual, após a licitação da obra, resta a apelação para os tribunais internacionais, uma vez que os recursos jurídicos na instância nacional não têm sido julgados em tempo hábil com relação ao processo de liberação da obra. Os procuradores do Ministério Público que têm se manifestado contra a liberação da licença têm sido constrangidos pelos advogados da União.


Polêmicas: O processo de licenciamento da UHE Belo Monte tem sido cercado por polêmicas, incluindo ausência de estudos adequados para avaliar a viabilidade ambiental da obra, seu elevado custo, a incerteza dos reais impactos sobre a biodiversidade e as populações locais, a ociosidade da usina durante o período de estiagem do Xingu, e a falta de informação e de participação efetiva das populações afetadas nas audiências públicas. 

No final de dezembro de 2009, os técnicos do Ibama emitiram parecer contrário à construção da usina (Parecer 114/09, não publicado no site oficial), onde afirmam que o EIA não conseguiu ser conclusivo sobre os impactos da obra: “o estudo sobre o hidrograma de consenso não apresenta informações que concluam acerca da manutenção da biodiversidade, a navegabilidade que garante a segurança alimentar e hídrica das populações do trecho de vazão reduzida (TVR) e os impactos decorrentes dos fluxos migratórios populacionais, que não foram dimensionados a contento”. A incerteza sobre o nível de estresse causado pela alternância de vazões não permite inferir com segurança sobre a manutenção dos estoques de pescado e das populações humanas que desses dependem, a médio e longo prazos. Ainda segundo o parecer técnico, para “a vazão de cheia de 4.000m3/s, a reprodução de alguns grupos de peixes é apresentada no estudo como inviável”, ou seja, o grau de incerteza denota um prognóstico extremamente frágil.

No início deste ano (01/02/10), o governo federal anunciou a liberação da licença prévia para a construção da UHE Belo Monte sob 40 condicionantes, nem todas esclarecidas. A licença foi liberada num tempo recorde e o leilão, que deveria acontecer em abril, foi adiantado para o início de março deste ano. Como a única voz dissonante, o ministro do Meio Ambiente enfatizou a concessão de R$1,5 bilhão como medidas mitigatórias ao projeto, um valor relativamente pequeno em relação ao custo estimado da obra (R$30 bilhões) e incerto para os impactos que ainda se desconhece.

Vale lembrar que uma bacia e seus povos repletos de história e diversidade social, ambiental e cultural nunca terão preço capaz de compensar tamanha riqueza.  

Fonte: Conservação.org

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