Será que o Brasil precisa de Belo Monte?
Contexto: A concepção original da  hidrelétrica de Belo Monte, que vem se remodelando desde o regime  militar, ganhou destaque internacional e acabou engavetado devido à  forte pressão dos povos indígenas e ambientalistas no final da década de  1980. Vinte anos depois, a Usina Hidrelétrica (UHE) Belo Monte volta  repaginada como uma das principais obras do Plano de Aceleração do  Crescimento (PAC) do governo Lula.
O projeto ressurge como uma  obra estratégica, apresentada por meio de um Estudo de Impacto Ambiental  (EIA) de mais de 20 mil páginas, como a possível terceira maior  hidrelétrica do mundo, perdendo apenas para a usina Três Gargantas  (China) e para Itaipu (Brasil-Paraguai). 
A hidrelétrica de Belo  Monte propõe o barramento do rio Xingu com a construção de dois canais  que desviarão o leito original do rio, com escavações da ordem de  grandeza comparáveis ao canal do Panamá (200  milhões m3) e área de alagamento de 516 km2, o equivalente a um terço  da cidade de São Paulo. 
Questão  energética: A UHE de Belo Monte vai operar muito aquém dos  11.223 MW aclamados pelos dados oficiais, devendo gerar em média apenas  4.428 MW, devido ao longo período de estiagem do rio Xingu, segundo  Francisco Hernandes, engenheiro elétrico e um dos coordenadores do  Painel dos Especialistas, que examina a viabilidade da usina.   Em  adição, devido à ineficiência energética, Belo Monte não pode estar  dissociada da ideia de futuros barramentos no Xingu. Belo Monte  produzirá energia a quase 5.000 km distantes dos centros consumidores,  com consideráveis perdas decorrentes na transmissão da energia. 
Esse  modelo ultrapassado de gestão e distribuição de energia a longas  distâncias indica que o governo federal deveria planejar sua matriz  energética de forma mais  diversificada, melhor distribuindo os impactos e as oportunidades  socioeconômicas (ex.: pequenas usinas hidrelétricas, energia de  biomassa, eólica e solar) ao invés de sempre optar por grandes obras  hidrelétricas que afetam profundamente determinados territórios  ambientais e culturais, sendo que as populações locais, além de não  incluídas nos projetos de desenvolvimento que se seguem, perdem as  referências de sobrevivência.  
Questão  ambiental: A região pleiteada pela obra apresenta incrível  biodiversidade de fauna e flora. No caso dos animais, o EIA aponta para  174 espécies de peixes, 387 espécies de répteis, 440 espécies de aves e  259 espécies de mamíferos, algumas espécies endêmicas (aquelas que só  ocorrem na região), e outras ameaçadas de extinção. O grupo de  ictiólogos do Painel dos Especialistas tem alertado para o caráter  irreversível dos impactos sobre a  fauna aquática (peixes e quelônios) no trecho de vazão reduzida (TVR)  do rio Xingu, que afeta mais de 100 km de rio, demonstrando a  inviabilidade do empreendimento do ponto de vista ambiental. Segundo os  pesquisadores, a bacia do Xingu apresenta significante riqueza de  biodiversidade de peixes, com cerca de quatro vezes o total de espécies  encontradas em toda a Europa. Essa biodiversidade é devida inclusive às  barreiras geográficas das corredeiras e pedrais da Volta Grande do  Xingu, no município de Altamira (PA), que isolam em duas regiões o  ambiente aquático da bacia. O sistema de eclusa poderia romper esse  isolamento, causando a perda irreversível de centenas de espécies. 
Outro  ponto conflituoso é que o EIA apresenta modelagens do processo de  desmatamento passado, não projetando cenários futuros, com e sem  barramento, inclusive desconsiderando os fluxos migratórios, que estão  previstos nos componentes econômicos do  projeto, como sendo da ordem de cerca de cem mil pessoas, entre  empregos diretos e indiretos.   
Questão  cultural e impactos da obra sobre as populações indígenas: O  projeto tem desconsiderado o fato de o rio Xingu (PA) ser o ‘mais  indígena’ dos rios brasileiros, com uma população de 13 mil índios e 24  grupos étnicos vivendo ao longo de sua bacia. O barramento do Xingu  representa a condenação dos seus povos e das culturas milenares que lá  sempre residiram.   
Por que os Kayapó, assim como os povos  indígenas do Parque Indígena do Xingu, que estão na cabeceira do rio,  têm se manifestado ferozmente contrários ao barramento do Xingu, que  acontecerá a quase 1.000 km de distância de suas terras? Porque para os  índios, o rio é o mundo, lá estão seus ancestrais, suas tradições, seus  mitos, seus territórios sagrados, sua cultura. E mesmo a mil  quilômetros de distância de onde vivem, o barramento do Xingu terá um  impacto direto nas suas vidas. 
Na cosmologia indígena, todos os  seres estão ligados por uma única teia, que de forma alguma se dissocia  da sua vida. O rio tem forte simbolismo para os povos indígenas do  Xingu. Sob a sua ótica, ele é continuação da própria casa e da própria  alma; é um ser vivo que constitui a essência da cultura e da  sobrevivência indígena.  
O projeto, aprovado para licitação,  embora afirme que as principais obras ficarão fora dos limites das  Terras Indígenas, desconsidera e/ou subestima os reais impactos  ambientais, sociais, econômicos e culturais do empreendimento. Além  disso, é esperado que a obra intensifique o desmatamento e incite a  ocupação desordenada do território, incentivada pela chegada de  migrantes em toda a bacia e que, de alguma forma, trarão impactos sobre  as populações indígenas. 
Como já  exposto, o Trecho de Vazão Reduzida afetará mais de 100 km de rio e  isso acarretará em drástica redução da oferta de água.  Os impactos  causados na Volta Grande do Xingu, que banha diversas comunidades  ribeirinhas e duas Terras Indígenas - Juruna do Paquiçamba e Arara da  Volta Grande, ambas no Pará -, serão diretamente afetadas pela obra,  além de grupos Juruna, Arara, Xypaia, Kuruaya e Kayapó, que  tradicionalmente habitam as margens desse trecho de rio. Duas Terras  Indígenas, Parakanã e Arara, não foram sequer demarcadas pela Funai. A  presença de índios isolados na região, povos ainda não contatados, foram  timidamente mencionados no parecer técnico da Funai, como um apêndice.
A  noção de afetação pelas usinas hidrelétricas considera apenas áreas  inundadas como “diretamente afetadas” e, por conseguinte, passíveis de  compensação.   Todas as principais obras ficarão no limite das Terras  Indígenas  que, embora sejam consideradas como “indiretamente afetadas”, ficarão  igualmente sujeitas aos impactos físicos, sociais e culturais devido à  proximidade do canteiro de obras, afluxo populacional, dentre outros. O  EIA desconsidera ou subestima os riscos de insegurança alimentar  (escassez de pescado), insegurança hídrica (diminuição da qualidade da  água com prováveis problemas para o deslocamento de barcos e canoas),  saúde pública (aumento na incidência de diversas epidemias, como  malária, leishmaniose e outras) e a intensificação do desmatamento, com a  chegada de novos migrantes, que afetarão toda a bacia.   
Violação  de direitos humanos: As populações tradicionais que habitam a  área onde a usina foi planejada não foram suficientemente ouvidas nas  audiências públicas realizadas para debater o projeto, como determina a  legislação brasileira e a Convenção 169 da ONU, ratificada pelo  Brasil em 20/6/2002, que garante aos índios o direito às oitivas, ou  seja, o direito de serem informados de maneira objetiva sobre os  impactos da obra e de terem sua opinião ouvida e respeitada. Foram  realizadas apenas três audiências públicas, consideradas insuficientes  pelo Ministério Público Federal. Infelizmente, no momento atual, após a  licitação da obra, resta a apelação para os tribunais internacionais,  uma vez que os recursos jurídicos na instância nacional não têm sido  julgados em tempo hábil com relação ao processo de liberação da obra. Os  procuradores do Ministério Público que têm se manifestado contra a  liberação da licença têm sido constrangidos pelos advogados da União.
Polêmicas:  O processo de licenciamento da UHE Belo Monte tem sido cercado  por polêmicas, incluindo ausência de estudos adequados para avaliar a  viabilidade ambiental da obra, seu elevado custo, a incerteza dos  reais impactos sobre a biodiversidade e as populações locais, a  ociosidade da usina durante o período de estiagem do Xingu, e a falta de  informação e de participação efetiva das populações afetadas nas  audiências públicas.  
No final de dezembro de 2009, os técnicos  do Ibama emitiram parecer contrário à construção da usina (Parecer  114/09, não publicado no site oficial), onde afirmam que o EIA não  conseguiu ser conclusivo sobre os impactos da obra: “o estudo sobre o  hidrograma de consenso não apresenta informações que concluam acerca da  manutenção da biodiversidade, a navegabilidade que garante a segurança  alimentar e hídrica das populações do trecho de vazão reduzida (TVR) e  os impactos decorrentes dos fluxos migratórios populacionais, que não  foram dimensionados a contento”. A incerteza sobre o nível de estresse  causado pela alternância de vazões não permite inferir com segurança  sobre a manutenção  dos estoques de pescado e das populações humanas que desses dependem, a  médio e longo prazos. Ainda segundo o parecer técnico, para “a vazão de  cheia de 4.000m3/s, a reprodução de alguns grupos de peixes é  apresentada no estudo como inviável”, ou seja, o grau de incerteza  denota um prognóstico extremamente frágil. 
No início deste ano  (01/02/10), o governo federal anunciou a liberação da licença prévia  para a construção da UHE Belo Monte sob 40 condicionantes, nem todas  esclarecidas. A licença foi liberada num tempo recorde e o leilão, que  deveria acontecer em abril, foi adiantado para o início de março deste  ano. Como a única voz dissonante, o ministro do Meio Ambiente enfatizou a  concessão de R$1,5 bilhão como medidas mitigatórias ao projeto, um  valor relativamente pequeno em relação ao custo estimado da obra (R$30  bilhões) e incerto para os impactos que ainda se desconhece. 
Vale  lembrar que uma bacia e  seus povos repletos de história e diversidade social, ambiental e  cultural nunca terão preço capaz de compensar tamanha riqueza.  
Fonte: Conservação.org
 
 
 
          
      
 
  
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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