A titulação de terras quilombolas, atualmente, obedece ao Decreto 4887, de 2003, que foi considerada por antropólogos, juristas e especialistas como um avanço para o reconhecimento e valorização das comunidades remanescentes de quilombolas. O problema é que o decreto corre perigo. Ele está sendo questionada por uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) impetrada em 2003 pelo Partido da Frente Liberal (PFL, atual Democratas), argumentando ser inconstitucional o Decreto. O julgamento da ADI ainda não tem data, mas pode acontecer brevemente.
Ontem (26) especialistas no assunto que participaram do debate "Comunidades Quilombolas: territorialidade e proteção jurídica", em São Paulo, afirmaram que revogar o decreto seria um retrocesso e prejudicaria as comunidades. Flávia Piovesan, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), afirmou que o decreto atual honra os compromissos internacionais firmados pelo Brasil, que visam garantir os direitos das minorias.
Ela acredita que revogá-lo pode, inclusive, comprometer o país. "Se essa ação for julgada precedente, terá vários impactos no cenário internacional, e o Brasil poderá ser responsabilizado por violar os direitos [das comunidades quilombolas]", explica. Entre os acordos firmados está a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais, adotada em Genebra, em 27 de junho de 1989.
Caso o decreto seja revogado, a titulação passa a obedecer ao antigo Decreto 3912, de 2001, que somente reconhecia como terras quilombolas as que "estavam ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos em 5 de outubro de 1988", além de atribuir a função de iniciar, dar seguimento e concluir o processo administrativo de identificação dos remanescentes das comunidades dos quilombos à Fundação Cultural Palmares (FCP). Atualmente o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) realiza essa função.
Uma das características do decreto 4888 é que a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos é atestada mediante autodefinição da própria comunidade e que, segundo o decreto, possuam uma "trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida". Para Flávia, não se trata apenas de reconhecer terras, mas da relação de identidade cultural com aquele espaço.
Dívida Social
"Se nós não lembrarmos que o começo de tudo foi a escravidão, se não lembrarmos que temos uma dívida social a ser paga, não adianta discutir direitos. É uma dívida que precisa ser paga e precisamos fazer essa reparação", afirma Girolamo Domenico Treccani, professor de direito Agrário da Universidade Federal do Pará (UFPA). Segundo ele, é necessário resgatar a história dos direitos dessas comunidades, para "resgatar nossa própria história". A proposta de ADI, entretanto, é que o quilombo continue sendo visto como era há 20 ou 30 anos, uma visão ultrapassada.
Treccani afirma também que existe uma solução para que as comunidades quilombolas sejam reconhecidas e os processos de reconhecimento de terras sejam mais ágeis. "Qual a melhor maneira de defender os direitos das comunidades remanescentes de quilombos? Cumprir o artigo 68 [do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias]. Só isso. O dia em que se convencerem de que é só cumprir o artigo 68 boa parte está resolvido. E agora pergunto: 20 anos depois que isso está no papel, por que ainda não aconteceu?".
Fonte: Amazonia.org.br
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